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O Flecheiro da discórdia

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Está em fase de conclusão a “Empreitada de Execução dos Arranjos Exteriores e Arruamentos no Flecheiro”[1], um projeto que tem dividido opiniões. Para uns, representa um avanço na requalificação urbana; para outros, é mais um exemplo de má gestão de fundos públicos e insensibilidade ambiental.

Apesar da aparente boa intenção de criar uma zona de inundação controlada, a conceção e a execução do projeto levantam sérias dúvidas.

Desde logo, o nome escolhido ignora por completo o elemento central da paisagem: o rio Nabão. Este rio, estruturante do ecossistema local, é mais do que um simples curso de água: articula os habitats terrestres e aquáticos, abriga uma galeria ripícola com funções ecológicas vitais, como a regulação da qualidade da água, o controlo da erosão, a promoção da biodiversidade e a mitigação do impacto das cheias. No entanto, no Flecheiro, essa galeria foi destruída, resultando num impacto ambiental profundo e irreversível, que não pode ser corrigido com simples intervenções paisagísticas.

A falta de multidisciplinaridade na equipa técnica é outro ponto crítico. O projeto apresentado no portal base.gov  foi coordenado por um arquiteto, também autor da memória descritiva do intercetor pluvial, uma responsabilidade que, por norma, competiria a um engenheiro civil. Além disso, participaram mais dois técnicos: um engenheiro técnico de iluminação e um arquiteto paisagista. Não há qualquer referência a especialistas em hidráulica, biologia, geologia ou engenharia biofísica, áreas fundamentais num projeto que intervém num sistema fluvial.

O financiamento comunitário de 2 milhões de euros foi concedido no âmbito do programa REACT-EU, sob a designação “Projeto para a reabilitação da rede hidrográfica do rio Nabão com soluções de engenharia natural” [2]. No papel, o projeto prometia soluções sustentáveis: desobstrução do leito do rio, modelação do terreno, criação de bacias de retenção para conter cheias centenárias, e a conclusão de um emissor pluvial. Tudo isto com o objetivo de criar um espaço de lazer para a população e facilitar ações de vigilância e fiscalização do leito.

Na realidade, após a chuva de janeiro de 2025, que correspondeu a um período de retorno[3] de cerca de 5 anos[4], o que se viu foi uma única e extensa bacia de retenção. Isto significa que o parque infantil, que foi implantado numa zona que, idealmente, só deveria ser afetada por cheias com períodos de retorno maiores, vai inundar com frequência?

Outro ponto crítico foi o não envolvimento da população no processo. O projeto não foi apresentado publicamente, nem contou com a participação daqueles que mais beneficiariam com a sua execução. Um espaço urbano que esteve inacessível durante décadas merecia ser devolvido às pessoas com cuidado. Ao invés, após meses de obras e as primeiras inundações, o que se observa é um cenário desolador, de abandono precoce.

É verdade que um espaço verde é vivo, dinâmico, e depende do tempo para que as árvores cresçam e as sementes germinem. No entanto, se as condições ambientais forem hostis, como inundações frequentes e mal geridas, essa regeneração natural pode não acontecer. O risco é que o Flecheiro, em vez de se tornar um exemplo de convivência entre cidade e natureza, se afirme como uma oportunidade perdida, onde se investiu muito e se ignorou o rio, as suas margens e os cidadãos.

 

Fotografia 1 – Flecheiro em abril de 2023 (Google Earth)

flecheiro 2023

Fotografia 2 – Flecheiro em abril de 2024 (Google Earth)

flecheiro 2024

Joana Simões

Licenciada em Eng do Ambiente pelo IST

Mestre em Bioenergia pela FCT/UNL

Doutoranda em Ciências da Sustentabilidade na UL

[1] https://www.base.gov.pt/Base4/pt/detalhe/?type=contratos&id=9615582

[2] https://www.cm-tomar.pt/images/CMT/municipio/documentos/portal_transparencia/2023/Ficha-REACT-EU.pdf

[3] O período de retorno é a probabilidade de ocorrência de um determinado evento. Um período de retorno de 100 anos significa que o evento deve repetir-se, em média, de 100 em 100 anos.

[4] Valor calculado a partir dos dados de precipitação disponibilizados no SNIRH. O caudal médio diário na Fábrica da Matrena ultrapassou 100 m3/s em janeiro e março de 2025. Caudais instantâneos da ordem de 500 m3/s foram registados em novembro de 2006.

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2 comentários

  1. A oressa de caçar votos da em asneiras como esta do Flecheiro, que ainda ninguém percebeu para que serve.
    Estacionamento?
    Jardim infantil?
    Feira de vaidades?
    Baia de retenção?
    Quanto custou’? Quanto saiu dos nossos bolsos, sem nossa autorização ou consulta?

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