E o morto levantou-se do caixão para ir serrar a velha
A “Serração da Velha” é uma atividade tradicional que se realizava em diversas localidades do nosso país, na quarta-feira da terceira semana da Quaresma.
Sob uma forma mais ou menos cristianizada, os povos modernos preservam tradições cujas origens pagãs atestam a sua antiguidade.
Portanto, através da Serração da Velha – ritual que invariavelmente tem lugar na quarta-feira da terceira semana da Quaresma – mais não se pretende do que celebrar o renascimento da Natureza e a expulsão dos demónios do inverno, nomeadamente através de manifestações ruidosas como a utilização de rudimentares instrumentos musicais.
O folclore não compreende unicamente as formas de cantar e bailar do povo mas ainda as suas crenças e costumes mais genuínos. Os grupos folclóricos dignos desse nome – como o Rancho de Alviobeira estão a saber preservar tais tradições, através da sua reconstituição em cenários tão reais quanto possíveis. E, sobretudo, estão a evitar que esses costumes e o respectivo cancioneiro caia no esquecimento, nomeadamente fazendo a recolha e procedendo à respectiva publicação.
Em tempos idos, a meio da Quaresma, em qualquer uma das noites e nas aldeias, era costume de um oiteiro para outro ouvir-se através de um funil para ampliar as vozes, os versos de escárnio e maldizer em que, num tempo em que o facebook seria uma miragem, desancar neste ou naquele, nesta ou naquela, que andava metida com o vizinho, o vizinho que era avarento e assim a brincar se dizer umas verdades, cujos versos eram repetidos vezes sem conta pelos homens a cavar os campos, para as sementeiras, pois havia versos que perduravam para sempre, para desagravo dos visados.
O Rancho de Alviobeira há mais de década e meia que reactivou um costume, que se tinha perdido. Primeiro no pinhal da Quinta ainda se ouviram as vozes, mas o público ao frio não aguentava e não ouvia bem o que se dizia. Daí o “serrar da velha” ter passado a ser um momento teatral, feito com imaginação, em que os elementos do rancho “vestem a pele de atores” e depois se passa aos versículos propriamente ditos em que são contemplados, mais os elementos do rancho. Desta vez a encenação teatral, foi dramática, dramática demais.
A Manuela Santos vestindo o papel da esposa do José Maçarico, que já toldado pela Alzheimer, não lhe dava sossego ao ponto de até o “rabo lhe ter de lavar”. Via as vizinhas, já viúvas e a passear nas “Excursões do Freitas” outras na “Universidade Sénior a ter aulas da Fernanda Leal” e ela ali “presa” a um homem que já não fazia os seus deveres de esposo e que lhe “tolhia” a liberdade de andar a divertir-se. Engendrou com a “curandeira” um chazinho milagroso que o levou “desta para melhor”. E quando arrastam o “pobre coitado” para trás do pano de cena, eis que daí a momentos em suspense, o pano corre e o “morto” muito ajeitadinho surge num caixão verdadeiro, onde não faltava a imagem de Nª Srª, as coroas e as carpideiras da terra. Coitado, depois de morto fazia tanta falta, era o melhor homem do mundo, mas já pensava nos momentos de lazer que ia ter, mal a terra fria lhe caísse em cima. A filha, emigrada em França, que há que vidas não aparecia logo apareceu, com a neta, com um “franciú” com mais pinta de “Chuleco” e meio afrancesada a língua de Camões lá era soletrada, de “mon papi je t´aime beaucoup”. Pelo meio aparece a filha ilegítima Vanessa e veio-se a descobrir que o pobre coitado sustentava duas casas, em vida e “que tinha a Vanessa fora do casamento”.
A sala cheia com cerca de oitenta pessoas, soltava risos e gargalhadas e o “pobre morto” a aguentar em cena, ali deitadinho no caixão que a funerária emprestou para o acto. Mas daí a pouco o morto levantou-se e saltou do ataúde e vá de ir “serrar a velha” dizendo os versos satíricos e o Manuel Mendes escondido da outra parte da sala a responder e questionar. Momentos de diversão pura e dura, momentos teatrais dignos, emoções, sátira e um cenário que “até arrepiava” com o papel do “morto” a ser muito bem desempenhado. Não é fácil!
António Freitas